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Olhar Olhão


"Terraço Pizza na Pedra", 5 Julho 2013 (foto da autora)


Procuro olhar a cidade de olhos fechados, passeando pelas memórias da minha vivência de habitante. Aterrei aqui há quase trinta anos e só agora pareço começar a observar com atenção o pulsar da vida em meu redor.

Viajo de norte para sul. Lá ao fundo, uma cordilheira recorta o céu. Como se nos vigiasse dia e noite, noite e dia, sobranceiro e mudo, o cerro de São Miguel amuralha toda a planície urbana.
 Pela fortaleza de terra abaixo resvalam blocos de cimento. As casas, começam por ser poucas, depois são cada vez mais e mais e mais, até serem muitas, concentradas num aglomerado de quadradinhos no coração da cidade.
Olhão é uma terra pintada de branco onde as casas são pequenos cubos despreocupadamente sobrepostos. São centenas de quadrados imaculados vistos do céu. Numa harmonia do que é espontâneo, a beleza sobrepõe-se à desordem visual caótica.  

"Da minha varanda" (foto da autora)
A meio caminho entre a serra e o mar, uma via rápida com nome de Infante deixa viaturas velozes passar num vai e vem, cada vez menos constante, entre Espanha e todo o Algarve.
Um pouco mais abaixo, uma outra linha de estrada, uma rua gigante que se chama nacional. Como formigas em fila indiana, carros em câmara lenta tentam diariamente atravessar Olhão, entupindo-o de lés-a-lés.   
Ao mesmo tempo, uns quilómetros paralelos a sul, um apito de comboio divide a cidade ao meio.
A norte, o futuro ergue-se em direcção ao céu. Numa terra de tanto Sol, gente jovem faz crescer filhos trancados em apartamentos. Falta-lhes espaço térreo para as brincadeiras, tal como a mim me falta para soltar a rédea aos pensamentos. Desejo para eles (e para mim) um amplo lugar verdejante de sombras e ar puro. Aqui já ficava bem um parque da cidade. Tomara que as gerações vindouras tenham mais sorte. Oxalá este sonho deixe de ser apenas uma esperança de ar livre. Porque o progresso não se aloja em hotéis, nem se compra ou vende em centros comerciais, os nativos carecem de mais natureza para expandir-se.  
A sul, o passado repousa nas ruas. Descendo e subindo o túnel, vizinho da biblioteca que um dia foi hospital, abre-se diante de nós a avenida principal, guardada pelo cansaço sentado dos velhos nos bancos de madeira do passeio central. Quase todos têm rugas de mar estampadas no rosto e muitas histórias naufragadas para contar. Hoje, debaixo da sombra das tardes e das boinas de fazenda, são espectadores dos transeuntes que circulam avenida acima, avenida abaixo. Assim matam as horas que restam: distraídos pela prosa trocada com os seus compadres e com os taxistas que por aqui estacionam os carros de praça à espera de passageiros. 
Ouve-se o badalar das horas contadas pelo repicar do sino. O som parte do alto da igreja e projecta-se aos quatro ventos ecoando pelo ar. Contemplativo, há um turista que se detém estático de telemóvel em riste. A matriz da cidade, erguida à custa dos filhos pródigos, homens do mar que aqui depositaram toda a sua fé, pedra sobre pedra, merece ser fotografada. O olhar curioso de espanto foca-se no telhado do templo, onde um par de cegonhas felizes se deleita no espaço escolhido para construir o seu ninho sagrado. O castanholar pontiagudo dos seus bicos é uma melodia cúmplice que com o hábito deixámos de apreciar.
De uma das travessas laterais à igreja, surge uma senhora baixinha e acalorada, arrastando uma saca com rodinhas. Segue num passo apressado. Sigo-a ao mesmo ritmo em pensamento. O arranhar descarrilado do carrinho de compras sobre a calçada atravessa a conhecida ruas das lojas. A senhora vai saudando vizinhos e conhecidos em vagos acenares de mão. Não olha para os lados, nem espreita as montras cujos manequins já conhece de cor. Vai com a ideia fixa no almoço. Espera encontrar peixe fresco bom para assar a carvão na açoteia.
É Sábado e começam a avistar-se os mercados. As duas torres de tijolo miudinho, alaranjadas e imponentes, erguem-se perante o Sol da manhã. Um amontoado de chapéus-de-sol cobre de sombra esplanadas repletas de gente. Pessoas e carros parecem atropelar-se ao atravessar a rua. Um empregado de mesa acelerado descarrega da bandeja metálica dois galões, uma sandes de papo-seco e um café. O intervalo que medeia o mercado da fruta e o do peixe é atravessado por um festival de sons, tons e cheiros que se misturam numa atmosfera peculiar. Diante de nós, revela-se a urgência adiada de um mergulho. Num espaço de metros entre os dois edifícios, um assomo líquido cintilante: finalmente os olhos encontram a ria, a formosa maravilha, que contra o cais abraça o histórico caíque Bom Sucesso. Réplica das memórias da revolta de Olhão, que por prémio real se fez vila, por recompensa heróica aos homens que, com alma de gente e garra de bicho, expulsaram franceses e atravessaram um oceano até ao Brasil, até o Rei ser avisado.
Para lá do horizonte, o mar, barrado pelas ilhas, finos tapetes de areia que se espraiam serenos sobre a tranquilidade das águas. No ar, sempre constante, um cheiro salgado que vai perfumando tudo de fresco. Nesta cidade, que amanhece sempre de janelas escancaradas, a ria é um espelho do céu de onde parecem chover gaivotas. Asas brancas de vento que sopram gargalhadas enquanto disputam com os pescadores o seu sustento, numa convivência feliz. Aqui, onde o céu é sempre muito azul, salpicado por esparsas nuvens brancas, todas as memórias são manhãs de Sábado, tardes de praia ou noites animadas de verão.
Nessas noites, os mercados já fechados, vazios de peixe e fruta, trasvestem-se. Nas traseiras, um carreiro de bares vende o prazer da ria a copo. O povo sai à rua. Na esplanada do canto, vendem-se gelados, muitos. Há filas de gente a escolher bolas de sabores. Casais de mãos dadas vêm tomar café e arejar a rotina. Guitarras afinadas e vozes sobem ao palco. Uma banda local derrama sons modernos sobre a multidão que abana a cabeça e bate o pé. Para os que ficam até mais tarde, até a noite quase tocar o raiar do dia, as horas são segredos que só a Lua conhece e não conta a ninguém. São olhares diluídos em cerveja, desejos de paixão revelados e outros tantos por confessar.    
Agosto chega à cidade com anúncios de festa. Há cartazes por toda a parte e metade do jardim pescador olhanense isolado do mundo por tapumes. Lá dentro, esconde-se um festival de marisco. Cá fora, começam a chegar rostos bronzeados esfomeados de diversão. O tempo é de férias e de reencontros. Entre os milhares, cruzam-se olhares por toda a parte. Todos procuram um lugar onde pousar a caneca e o camarão, mesa e cadeiras para que os corpos sentados possam fruir a noite ao ritmo da música e dos sorrisos.
À beira de água, anoitece. Pássaros esvoaçam um alvoroço de pios. Procuram no escasso arvoredo um galho para pernoitar. Quando o encontram são o silêncio camuflado numa copa qualquer. Junto ao muro da ria, uma brisa amena atravessa-nos o pensamento e devolve-nos a paz.
A marginal que passa frente aos mercados envolve toda a cidade num abraço largo. Nas extremidades, rotundas. Entra-se no ontem e sai-se no amanhã. Entra-se na pesca e sai-se no recreio. Entra-se na doca e sai-se na marina. Entra-se na tradição e sai-se na modernidade. Extremos que se ligam, que convivem sem se tocar. Numa ponta, do hotel chique sai um homem fino. Na outra ponta, de uma traineira desbotada sai um velho mestre engrossado por um copo a mais, pela vida, pelo sal e pelo Sol. O mesmo Sol que ilumina adiante o Parque Natural e atrás a montanha branca que anuncia as salinas. Nos entremeios, as conserveiras - as duas que sobram, de tantas que eram – e os restaurantes, em fileira, a crescer, porta sim, porta sim. Montras de frescura com peixe exibido e ementas recheadas com xarém escondido. O quê? (que nome estranho). Xarém (repetimos o nome): as papas de milho (em árabe) que sabem bem.
Cada vez mais amiúde, um rasgo de trovão interrompe os sons da natureza, percorrendo o céu sobre a nossa cabeça. São aviões de baixo custo que trazem cada vez mais turistas carentes de Sol e de mar.
Sol e mar. A felicidade de um povo assente num binómio. Aos olhanenses de sonhos encolhidos é tudo quanto baste para uma vida boa. Apanhar a carreira das onze ao Domingo e passar a tarde na ilha é a alegria de um ano inteiro. O farol não nos pertence, mas continua a ser a nossa praia. Águas cristalinas de trópicos, ventos abafados de África, um paraíso aqui tão perto.        
Ilha do Farol (vista do barco da carreira das 11h), 28 de Julho de 2013 (foto da autora)
Regresso a terra. O meu pensamento, cansado de recordar uma cidade tão pequena que parece imensa, vem deambulando pelas ruelas da Barreta, o bairro mais antigo e típico da cidade. Imagino-me noutros tempos e em ilusões oiço os cloques atrás de mim. Sou perseguida por um enigma, uma mulher mistério que se esconde no Bioco e arrasta sapatos de ourelo*. Numa placa de madeira, vejo esse mesmo traje, uma capa de capuz negro a anunciar uma nova tasca. É a juventude a retomar a tradição, gente nova que, a empreender, toma as rédeas à cidade.   
Sou amiga dessa juventude. Pertenço a esta cidade, que não me viu nascer, tal como ela já me pertence em parte. Em nome deste amor adoptivo de filha, ofereço-te estas palavras, minha mãe, neste dia 16 de Junho em que te festejas e celebras cidade, Al-Hain**, lugar de Olham, Olhão da Restauração. 
* Sapatos de confecção caseira, que ocupava muitas mulheres em Olhão e eram vendidos nas feiras e mercados por todo o Algarve e em Setúbal.
**Olho de água em árabe. Primeira designação do lugar que viria a ser Olhão.
Para saber mais sobre Olhão:

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